sábado, 18 de abril de 2009

Difficile est longum subito deponere amorem

Orlando…

Cheguei a Lisboa. Tantos carros, tanta gente apressada, tanta confusão. Sinto que parei no tempo (ou foi este que parou?), com tanto movimento à minha volta. Para onde devo ir e como? Estou perdida… Mas não posso desistir agora! Vamos Laura, avança. São só carros, são só pessoas… apenas em maior quantidade e num ritmo mais acelerado…
Mas não. Bloqueio. Não consigo. A minha vida resume-se a ir do quartinho que arranjei aqui, para a Faculdade, esse grande lugar com tanta gente junta e da minha idade como nunca antes tinha visto (mesmo somando todos os que conheci ao longo da vida inteira e multiplicando pelo mesmo número). E da Faculdade para o meu quartinho. Só preciso de apanhar o metro (esse transporte incrivelmente estranho e útil que é quase mítico no interior de Portugal) e ando quatro estações para chegar ao meu destino. Era esta a minha vida até te conhecer…

Para ocupar o meu tempo livre e não dar em doida com a solidão que se encontra no silêncio de um quarto, comecei a frequentar o “clube das clássicas - ler e conversar sobre os clássicos”. Eu fazia a primeira parte da proposta e da segunda escapava sem ninguém reparar. Até um dia. Até ao dia em que tu reparaste. Nunca te tinha visto até esse dia, nunca tinha sequer ouvido falar de ti. E a partir desse dia, foi como se só passasses a existir tu e o resto era o tempo a passar. Pela primeira vez desde há muito, senti o tempo a passar…
Tu reparaste naquela rapariga com uma mochila preta cheia de livros, que apontava muito do que ouvia e olhava depois pensativa para um qualquer ponto da sala que não o olhar de alguém. Tu reparaste naquela rapariga discreta e solitária e sentiste a perdição do seu olhar. Sentiste, foste o primeiro em tudo. Naquele dia nasci. Tu nasceste-me.
Vieste ter comigo no fim e perguntaste se eu dava aulas ali ou noutra faculdade. Fiquei completamente perplexa, nunca me fizeram mais velha, muito menos numa primeira “miragem”, nem respondi… E nesse olhar infantil de perplexidade com as surpresas do mundo, tu percebeste o teu engano e gargalhaste. Uma gargalhada tão intensa que me encheu de vida para te conseguir responder. Soltei um risinho nervoso, mas cúmplice e disse: 1ºano, turma B. Sem dar por nada ficámos a conversar mais de uma hora até dizeres que tinhas de ir: “Até amanhã, sra. Professora” – disseste a sorrir. Um sorriso tão rico que se contagiou de forma tal e me acompanhou o resto da noite, viajando até nos meus sonhos.
No dia seguinte não pensava em mais nada senão em ver-te, em poder retribuir-te um sorriso mais uma vez, por mais singelo que ele fosse. Procurei-te por toda a parte e quando te vi, perdi a coragem e corri para casa. Isto passou-se durante dias e dias. Perseguia-te sem que me visses. Não me sentia digna das tuas palavras, do teu tempo e atenção e por isso perseguia-te escondida. Não conseguia deixar de te perseguir. Perseguia-te para que o tempo existisse.

Passado muito tempo, semanas ou talvez meses, voltaste a surpreender-me. Apareceste na aula de Política e Sociedade Romanas e pediste para me dar uma palavrinha. A professora Amélia nem sabia quem eu era, como é óbvio, ainda que tivesse sido a única a tirar 19 na primeira e única frequência até então. Foi a primeira vez que a minha turma reparou que eu existia, porque tu chamaste por mim. O meu coração estava taquicárdico de tanta vontade de te seguir naquele preciso momento. Mas tive de esperar pelo fim da aula. Depois corri o mais depressa que pude até ao teu gabinete, onde me recebeste com o teu sorriso maravilhoso e com a pergunta: “por onde tens andado rapariga? Tenho procurado por ti…”. Acho que nunca te ouvi um “olá” ou “bom dia”; tinhas o bonito hábito de me receber sempre com uma questão. E era disso que eram feitas as nossas tertúlias, de perguntas e respostas. No início perguntavas mais tu que eu, mas cedo percebeste que eu não era boa a responder…as minhas respostas costumam ser curtas, para não me baralhar mais. Mas a verdade é que também sempre fui má a perguntar, com medo de invadir um espaço que não é meu, ou de não fazer uma pergunta inteligente…sim, porque o maior sábio não é tanto aquele que responde a mais perguntas, mas sim aquele que faz as melhores perguntas perante um problema que surja. Mas foste tão perfeito para mim, que cedo soubeste como fazer-me falar. E o mais incrível, é que te interessavas pelo que eu dizia! Começaste a procurar-me para te ajudar com a preparação das aulas, para discutirmos ideologias, interesses… tantas vezes falámos da complexidade do ser humano, que tanto nos interessava… Apaixonaste-me pela mitologia clássica, disciplina leccionada por ti e que eu ia ter no 3ºsemestre =) quase não precisaria de a ter mais tarde, uma vez que estava a ter aulas particulares, mas também nunca me iria importar de ouvir o mesmo várias vezes, desde que fosse dito por ti. Apaixonavam-me as tuas palavras, a tua vida!
A certa altura percebi que eu também te apaixonava. Apaixonava-te com as minhas respostas e as minhas perguntas, apaixonavam-te os meus escritos (de todo o tipo, até mesmo os apontamentos das aulas). Descobriste que aponto coisas que ouço ou que leio, que aponto pormenores comportamentais de alguém em quem reparo. Apaixonaste-te por isso…ficávamos horas a discutir porque é que o professor de latim coçava as partes baixas sempre que intimidava alguém com uma frase para traduzir, ou porque é que tu coçavas a barba sempre que lançavas uma pergunta comprometedora, ou porque é que a professora Amélia se agarrava ao seu fio com um medalhão de Nossa Senhora de Fátima durante a apresentação de trabalhos…
Impressionavas-te muito com o que escrevia. Dizias-me: “Os escritores barricam-se em histórias para não sofrer. Primeiro sofre-se, escreve-se por vingança. Depois atinge-se o requinte de escrever em vez de sofrer – as personagens que sofram por eles e, se possível, para lucro deles. Já atingiste esse requinte, ainda que o teu único lucro seja o que aprendes. Sofres por escrever e escreves para aprender.”.

Havia uma cumplicidade entre nós que não terei com mais ninguém. Um perante o outro estávamos nus.
Sabia que eras casado, nunca mo escondeste mas, para mim isso era uma realidade tão distante que quase não existia, a não ser nos momentos em que dizias “Tenho de ir”. E começou a acontecer que, para ti, essa realidade também ficou cada vez mais distante.
Chegou o dia em que o que havia entre nós ultrapassou os campos da cumplicidade nos gostos e ideologias. O respeito e admiração fizeram crescer um desejo de união inexplicável.
Naquele fim de tarde quente, levaste-me a casa e disse-te para subires e veres uns textos que uma senhora idosa de quem cuidei em Castelo Branco me tinha deixado. Umas relíquias sobre a mitologia grega, escritos em grego arcaico, que eu andava há tempos a tentar traduzir. Não resististe, claro. Chegámos ao meu quarto e comentaste a sorrir “Estou sempre a dar-te uns anos a mais na minha cabeça”. Deve ter sido de olhares para os meus peluches…e no entanto, assim que te sentaste à espera dos textos, agarraste-te tu também ao meu Cácá, o meu peluche laranja de ar simpático e sorridente, que identifiquei contigo, anos antes de te conhecer.
Sentei-me a teu lado com os textos na mão. Nunca me aproximara tanto do teu corpo. O teu cheiro surpreendeu-me pela delicadeza e pela névoa erótica. Encostei o meu braço ao teu e comecei a transpirar. Sentia uma vontade violenta de me desmoronar em ti. Queria oferecer-te o meu corpo para que o absorvesses no teu.

Pouco tempo depois divorciaste-te. Achei que te ia ter para sempre.
Os meses que passámos juntos pareceram uma vida inteira… porque foram a única época em que realmente vivi. Vivi tão intensamente que a morte deixou de existir. Eu vivi-te. Terei por isso sido eu a matar-te?

Esprememo-nos quanto era possível, sem nunca saciar aquela fome. Oh se eu pudesse voltar a ter só um pouco daqueles momentos em que nos estendíamos na cama a ver aqueles documentários sobre Alexandre, o Grande, ou sobre a música Antiga da Grécia associada à mitologia… se eu pudesse voltar a levar-te o pequeno almoço ao gabinete com um jornal na mão e um artigo assinalado para leres com mais atenção e discutirmos mais tarde… se eu pudesse receber de novo o dicionário mitológico que me deste… Se eu pudesse, simplesmente, voltar a sentir a tua existência! Oh, se ao menos uma gota de ti pudesse ainda escapar da tua morte para a minha vida, irmanar-nos num pacto de sangue, com a leviandade valente das crianças!

Havia um único propósito no mundo que te movia mais do que todos os que eu partilhava contigo… e era também esse o único que eu não podia partilhar por mais que quisesse…os teus filhos. Da minha idade praticamente, um deles mais velho até, foram a paixão que te afastou de mim primeiramente. Mesmo assim, mantiveste-me viva, por mais longe que eu estivesse do que me habituaras a estar. Eles estavam magoados contigo, queriam o pai de volta e tu voltaste. Eu fiquei. Era difícil, ninguém nos diz como sobreviver ao murchar de um sentimento que não murcha, mas continuava a sentir o tempo passar porque tu existias. E eu continuava a viver em cada um dos teus gestos.
Ligavas-me de pequena eternidade em pequena eternidade e dizias ter saudades não pelas palavras que usavas, mas pelas tertúlias que instaurávamos automaticamente com temas lançados por ti. De resto, eu sobreviveria em ti, no permanente campo de batalha da tua memória, não precisava de mais. O pior foi quando também esta se foi e só sobrou a minha. Mais valia agora ela não existir, porque assim poderia morrer, uma vez que é só ela que me mantém viva sendo o único sítio onde ainda permaneces…

Foi também num fim de tarde quente que me morreste. Partiste mais cedo, mas só ao fim da tarde eu o soube. Ao ver a professora Amélia agarrada à sua Nossa Senhora e a informar um professor de 3.º ano do ocorrido, caí incrédula no chão do pátio perto da esplanada. Socorreram-me, tentaram perceber o que se passava comigo (conseguíramos manter a nossa relação em segredo porque nunca ninguém nos deu atenção suficiente, especialmente a mim… e felizmente que assim foi…). Consegui fugir das pessoas mais uma vez e correr para casa com a mesma pressa que tinha quando te procurava no início. Mas quando dei por mim, não era em minha casa que estava, mas na tua. Não sei quanto tempo passou até ver alguém da tua parte – a tua filha. Passei a noite à tua porta e ela só apareceu de manhã. A noite foi eterna e vazia. Não chorei porque nem lágrimas tinha para isso. As lágrimas têm vida a mais para aquela que eu passei a ter nesse dia. Se antes de te conhecer tinha pouca, agora nem forças tenho para sobreviver, sou apenas uma existência vazia…
Consegui ir ao teu velório. Consegui ir ao teu funeral. Ninguém parecia saber que tinhas o sonho de ser sepultado como os antigos nobres micénicos, com algum do teu equipamento militar junto a ti. No dia seguinte consegui deixar-te as relíquias da senhora de quem cuidei em Castelo Branco e a tradução já feita… ao menos com isso pudeste ficar para poderes continuar a batalhar na tua constante pesquisa…
Agora acabei. Queria morrer, mas não consigo. Morreste-me antes que eu morresse, e não consigo morrer sem ti…
Por isso acabei… simplesmente acabei…

19 de Outubro de 2007

Laura

1 comentário:

  1. Aí está uma história violenta! É um caminho duro, mas é um bom caminho.

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