sexta-feira, 3 de abril de 2009

Do anonimato ou a vontade de dormir para sempre


AMANDA

Há uns dias, tive mesmo de sair. Eu sei, a praia está mesmo a dois passos da minha porta e não devia ser tão difícil apanhar um bocadinho de sol. Estou aqui há duas semanas e continuo a ter a cor do Inverno. Mas há uns dias tive mesmo de sair. Por respeito à Patrícia, acho. Pelo respeito que ainda lhe tenho e que afinal me faz acordar. Faltavam coisas básicas cá em casa: papel higiénico, detergente, fruta, leite. O respeito pela Patrícia fez-me sair de casa para comprar umas coisas; para me enfiar numa fila de mercearia com ar simpático e cheio de pessoas sorridentes que até fiam se te faltarem uns trocos para acabares de pagar a conta. Não sei estar com pessoas, se elas estiverem felizes ainda é mais difícil. Não sei estar, nem imagino como é que uma coisa destas se pode desaprender... Como é que se desaprende a ser sociável? Como? Antes as coisas eram tão fáceis. Falei imensas vezes com pessoas cheias de sonhos, algumas utopias, e vi-me, nessa altura, embrenhada como eles nessa vontade única e jovem - adolescente, talvez? - de mudar o mundo. Mudar o mundo... e essa vontade foi há tão pouco tempo. Passaram 20, 30 minutos talvez... É assim que parece. Não sei que caminho foi este que me fez chegar a este mal estar, a este desconforto. A roupa incomoda-me, o cheiro a comida incomoda-me, o som do mar enfurece-me, a felicidade da Patrícia assusta-me... Sempre naquele rodopio de gente crescida, sempre feliz, com aquilo que é dela, materialmente. Até eu tenho lugar nessa lista: na lista dos materiais... E quando dou por mim, depois de uma juventude tão fértil, tão feliz, aqui estou, abandonada com as minhas pequenas frustrações, com o desconforto de levar uma existência anónima. Caminhei lentamente, nos últimos dois anos, para este anonimato, para esta falta de identidade. Não chego a lembrar-me do meu nome. AMANDA: aquela que é amada. A minha certidão de nascimento está errada. Está tudo errado desde o início, afinal. Devia ter negado as minhas utopias, os meus amores, devia ter conquistado o meu lugar no mundo das pessoas que têm um emprego estável das 9h às 17h e que no tempo livre vão a espectáculos e jantam fora e depois cagam perfume quando passam. Devia ter-me transformado nessa pessoa. Afinal, este é o lugar, o fim da linha para onde me trouxeram os meus sonhos. Os meus sonhos, viver pela arte e não dela, conquistar o meu lugar perto da pessoa que amo... Os meus sonhos trouxeram-me para este lugar enfastiado e bolorento. Não quero fazer nada. Não quero estar com nínguem... Durante as insónias, aquilo que desejo verdadeiramente encontrar é um sítio escuro, fechado e longe do sol e do cheiro a mar e a vida, onde possa lentamente desvanecer. Adormecer para sempre...

2 comentários:

  1. Gostei muito "desta" ida ao supermercado! Porque não "transformá-la" numa cena? Que dizem?

    Ágnes,

    Tenho lido atentamente as tuas "manifestações", estou completamente sintonizado ;) Gostava que lesses o que escrevi, e o que estou a pensar escrever, para a uma das cenas no "não-apartamento", antes de o tornar blogo-público.

    Chuta ai o mail...

    Até já

    HugoCosta

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  2. Alo Hugo,

    Aqui vai o email. Também gostava muito de ler. Depois dou notícias.

    Até já

    inespereira@hotmail.com

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